segunda-feira, 10 de maio de 2021

Os Desafios no Caminho do Trem

A história da Linha Auxiliar teve início em 1897 através da Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil. Cem anos depois foi desativada permanecendo com trilhos na maior parte do percurso e sem invasões significativas além da natureza, até ser encampada pelos municípios onde não havia mais tráfego de trens: Miguel Pereira, Paty Do Alferes e parte de Paraíba do Sul.

Nos últimos anos de atividade foram implantados trens turísticos como o Trem da Serra, Trem Azul, e Trem da Estrada Real, mas por eventos diversos e principalmente por má administração essas atividades também foram encerradas.

Ao longo do caminho muitas estações foram desativadas e assim como casas de turma passaram a abrigar ex-ferroviários e suas famílias, outras construções relacionadas a ferrovia foram abandonadas ou acabaram desaparecendo ficarem localizadas em pontos isolados.

A Rede Ferroviária encontrava-se em processo de privatização e deixou a cargo dos municípios autonomia sobre a utilização da linha para projetos turísticos que por sua vez eram administrados por empresas terceirizadas, além disso essas se comprometiam apenas em organizar as viagens e operar a composição, sem realizar a manutenção da via permanente, contenção de barreiras ou a retirada de pedras que constantemente desmoronavam sobre os trilhos inviabilizando a passagem do trem.

Em 1996 a FCA (Ferrovia Centro Atlântica) ganhou a concessão da Linha Auxiliar utilizando apenas o trecho entre Paraíba do Sul e Porto Novo onde havia o entroncamento com a antiga Linha do Centro da Leopoldina, esse trecho ficou conhecido como "rota da bauxita", minério extraído próximo ao pátio da estação de Barão de Amparo em Cataguases e transportado pelos cargueiros da FCA até a estação de Barão de Angra em Paraíba do Sul onde era realizado o transbordo da carga trazida pelos vagões em bitola métrica da FCA para os vagões de bitola larga da MRS que trafegam pela Linha do Centro da EFCB.

Embora essa parte da Linha Auxiliar estivesse em operação, segundo registros nenhum trem trafegou novamente entre Japeri e Paty Do Alferes.

Por volta de 1999 o auto de linha A-101 originário da CBTU que era mantido até então pela ABPF foi transferido para Miguel Pereira, e com a criação da AFPF (Associação Fluminense de Preservação Ferroviária) por iniciativa do engenheiro ferroviário Luiz Octávio Da Silva Oliveira, o auto de linha foi cedido para AFPF afim de permitir a fiscalização do trecho da ferrovia em Miguel Pereira e Paty Do Alferes, podendo chegar até Cavaru e Werneck.Cavaru

Como sempre, o descaso dos políticos com aquilo que não lhes pertencia começou a interferir a circulação do auto de linha asfaltando passagens de nível ou ultrapassando a faixa de domínio da ferrovia. Até mesmo quando o erro era reconhecido restava aos voluntários da AFPF o trabalho de desenterrar os trilhos e abrir caminho.

No ano de 2001 durante o mandato do prefeito Roberto Macarrão dois complexos ferroviários em Miguel Pereira foram vendidos sob circunstâncias duvidosas a uma rede de supermercados que logo demoliu os antigos galpões da RFFSA no centro da cidade e em Governador Portela deixando um enorme vazio. 

Observação: embora a imagem anterior seja recente, foi exatamente assim que ficou essa área quando os galpões da RFFSA foram demolidos. 

Após perceber o erro em vender um patrimônio da Rede Ferroviária, a prefeitura de Miguel Pereira foi obrigada a comprar de volta o terreno, mas infelizmente já era tarde e não restou qualquer vestígio da enorme estrutura construída ao lado da estação.

Em 2002 foi inaugurado em Paraíba do Sul o Trem da Estrada Real, uma opção turística que mantinha preservado um trecho com pouco mais de 35 quilômetros entre a estação de Paraíba do Sul e Cavaru. 

O Trem da Estrada Real era formado por duas composições, uma pequena locomotiva a vapor do tipo 0-4-2 que tracionada três vagonetes abertos; E uma manobreira a diesel que tracionada dois carros de passageiros de madeira.

Nessa época a AFPF emprestou o auto de linha A-101 para recuperar trechos da via permanente e realizar a manutenção antes das viagens.

Infelizmente em 2003 um dos vagões de madeira se desengatou do resto da composição e ao chegar na ponte giratória descarrilou, caindo no meio da rua. Esse acidente não teve vítimas mas foi o suficiente para suspender a circulação de composições com pessoas a bordo. O auto de linha permaneceu em Paraíba do Sul até 2006 quando retornou para Miguel Pereira sob os cuidados da AFPF.

Por dez anos os incansáveis membros e voluntários desse grupo se dedicaram em fiscalizar um trecho de 55 quilômetros de linha férrea sem qualquer ajuda governamental, até começar a canibalização do que restava da ferrovia.

No ano de 2007 o trecho da Linha Auxiliar que atravessava o centro de Paty Do Alferes sofreu uma grave mutilação, quando por ordem da então prefeita Lúcia de Fátima "Batata", foi aberta uma passagem para carros ao lado do antigo "pontilhão", o desafogamento do trânsito custou duzentos metros de trilhos que acabaram sendo retirados. 

A intenção era criar uma ciclovia no traçado da ferrovia que embora desativada contava com os membros e voluntários da AFPF para fazer a inspeção do trecho. O acesso do auto de linha a estação de Paty Do Alferes foi comprometido, e a cada dia ficava mais difícil superar o concreto jogado sobre os trilhos.

Em março de 2011 enquanto o auto de linha estava estacionado em Miguel Pereira foi incendiado por vândalos, e embora o ataque tenha acontecido próximo ao centro da cidade, em nenhum momento a prefeitura se importou em contribuir com a recuperação do material ou melhorar a segurança do pequeno trem da AFPF.

Os membros da Associação Fluminense de Preservação Ferroviária AFPF foram incansáveis na preservação da linha e do pouco material rodante em condições operacionais disponíveis aqui, percorrendo o maior trecho possível e realizando manutenção da via permanente por conta própria, por amor a essa ferrovia e sem qualquer ajuda dos municípios ou de seus políticos.

A situação em Miguel Pereira que parecia ser só questão de ego se revelou como marketing político. Há seis anos atrás, em 2015 o ex prefeito Cláudio Valente se mostrou interessado em reativar a linha entre Miguel e Portela para fins turísticos, a primeira demonstração pública sobre esse projeto foi o teste realizado com uma réplica de bonde feito para a AFPF em bitola métrica (original da Linha Auxiliar).

A ideia foi bem recebida até que surgiu a oportunidade de implantar um trem turístico através da ONG Amigos do Trem que possuía uma automotriz Budd RDC, conhecida como Litorina. Logo foi realizada a parceria entre a ONG e a prefeitura de Miguel Pereira mas seria necessário readequar os cinco quilômetros de linha em bitola métrica pois era incompatível com a Litorina projetada para bitola larga.

A continuidade do projeto previa a colocação de um terceiro trilho para que na linha em bitola mista pudesse trafegar tanto a Litorina da ONG, quanto o auto de linha e a manobreira da AFPF. Infelizmente não houve tempo suficiente para concluir o projeto devido a proximidade com o período de campanha eleitoral. 

Constantemente eram realizadas viagens teste com a Litorina e era aberta a visitação pública, por ficar na estação de Miguel Pereira no centro da cidade em pouco tempo se tornou cartão postal atraindo todo tipo de público.

Assim teve início a perseguição no estilo "caça as bruxas", pois o novo prefeito deixou claro sua opinião a respeito da Litorina: "...Eu falei que no meu governo essa Litorina não andaria um metro sequer...", e por ter sido uma iniciativa da gestão anterior a Litorina foi banida para o pátio de Governador Portela, e como se não bastasse, as viagens teste foram proibidas.

Com a insatisfação da população a favor do trem turístico, em reunião com o ex governador Wilson Witzel o prefeito André Português solicitou ajuda do estado para encontrar uma locomotiva a vapor que pudesse fazer o trem turístico em Miguel Pereira substituindo a Litorina por uma "Maria fumaça" pois essa teria mais haver com a história da cidade. Mas o plano começou com o pé esquerdo ao tentar trazer uma locomotiva a vapor preservada pelo museu ferroviário da cidade de Tubarão em Santa Catarina.

No ano de 2018, em visita ao museu ferroviário de Tubarão o prefeito de Miguel Pereira se interessou por uma locomotiva em particular, a Baldwin N° 53 fabricada em 1920 para a Estrada de Ferro Tereza Cristina.

Foi solicitado ao DNIT a permissão de transferência da locomotiva de Tubarão para Miguel Pereira sem o consentimento dos responsáveis pelo museu ferroviário e todo seu acervo. O termo de cessão chegou a ser publicado no diário oficial, entretanto a 1ª Vara Federal de Tubarão determinou a suspensão da transferência da locomotiva ou qualquer outro material rodante pertencente ao município de Tubarão.

A busca por uma "Maria fumaça" levou o prefeito André Português a se reunir com o então governador Wilson Witzel e o presidente da Fecomércio Antônio Florêncio de Queiroz para negociar a doação de uma das locomotivas a vapor do Sesc mineiro de Grussaí para o projeto turístico de Miguel Pereira.

No início de 2020 o trecho da Linha Auxiliar em Paty Do Alferes estava em risco após a decisão do prefeito Juninho Bernardes em asfaltar os trilhos que atravessavam a cidade para melhorar o acesso dos carros ao estacionamento rotativo.

Ao contrário do que acontecia em Paty, com a chegada da Maria Fumaça N° 220 na noite de 14 de maio tudo parecia favorável para a reativação da linha em Miguel Pereira, mas nada estava garantido pois ainda seria necessário rebitolar os 5 quilômetros de linha entre o centro da cidade e o distrito de Governador Portela.

Infelizmente a locomotiva recebeu muitas críticas de um jornal da cidade que fez uma série de comentários se referindo a ela como "Maria podrão", uma brincadeira de mal gosto que demonstrou imaturidade e falta de ética. A locomotiva consolidation N° 14119 conhecida como 220 foi fabricada em 1894 e está em condições operacionais até hoje, sua trajetória e incrível e usar termos pejorativos para se referir a um patrimônio de tamanha importância mostra o quanto o editor das publicações maldosas foi infeliz com suas palavras tornando evidente a sua falta de profissionalismo e neutralidade política.

Se a locomotiva está precisando de reparos estéticos não e motivo para tratá-la como sucata ou algo improdutivo, afinal para uma locomotiva a vapor que sobreviveu mais de cem anos trabalhando em diversas ferrovias, não são alguns detalhes que hão de tirar seu mérito.

De fato a pandemia afetou os planos em relação ao projeto do trem turístico, mas analisando alguns sinais subliminares nos outdoors espalhados pela cidade demonstrando o resultado das obras de urbanização de alguns espaços coletivos, curiosamente não há qualquer alusão ao trem interagindo com o novo visual, assim como nesses projetos, as frondosas árvores que muito contribuiram para o status de "3° melhor clima do mundo" não fazem parte das ilustrações. Nesse outdoor em particular ainda deixa claro que após a conclusão da tal rua coberta, não faz parte dos planos reconectar a ferrovia que precisaria passar em frente dessa estrutura desnecessária.

Nos áureos tempos da Linha Auxiliar, ao lado da estação de Miguel Pereira foram construídos dois casarões para acomodar os engenheiros ferroviários e suas famílias, com acesso direto ao complexo ferroviário que se desenvolveu em torno da estação de Miguel Pereira.

Desde 2015 a Rede Ferroviária junto ao IPHAN reuniam esforços para repassar os casarões ao poder público e finalmente em 2018 foi assinado o contrato de municipalização dos bens. 

Recentemente ambos começaram a ser reformados, uma para se tornar a nova sede da secretaria de turismo de Miguel Pereira enquanto a outra foi arrendada ao restaurante Relíquia.

O pouco que restou do trecho original da ferrovia próximo a estação começou a ser descaracterizado para melhorar o acesso ao restaurante e a secretaria de turismo, empurrando o auto de linha e a manobreira para bem longe, fora do campo de visão dos abastados frequentadores do novo empreendimento. 

Uma pseudo obra de paisagismo foi a desculpa perfeita para afastar o trenzinho da AFPF que não se encaixa nos padrões de urbanização que ultimamente vem modificando o formato da cidade. Através de pedras e grama sintética nossa história está sendo apagada.

Essa "passarela" sobre os trilhos originais e só mais um dos indícios de que mesmo que o trecho em bitola larga entre Miguel Pereira e Governador Portela seja reduzido para bitola métrica, ainda sim a linha não será reconectada ao trecho preservado graças a AFPF que mesmo sem qualquer apoio da prefeitura permanece incansavelmente resistindo apesar de tantas dificuldades.

Preservar construções ferroviárias históricas mas cobrir a linha férrea original que ainda e utilizada e uma atitude incoerente.

Primeiramente o trem da AFPF ficava na estação de Miguel Pereira, com a alteração da bitola a pequena composição passou a ficar em frente as casas dos engenheiros.

A abertura do restaurante e a realocação da secretaria de turismo permitiu dominar mais um trecho da ferrovia.

Com o auto de linha e a manobreira fora de vista a prefeitura não precisa mais se preocupar com a desarmonia estética entre seus empreendimentos de luxo e qualquer vestígio de tempos passados. A restauração não foi pensada em beneficiar o patrimônio histórico ferroviário, mas para definir um estilo de ostentação.

Infelizmente como a preservação ferroviária não e prioridade dos atuais governantes do estado do RJ, a prefeitura de Miguel Pereira segue apagando sorrateiramente os rastros da ferrovia enquanto de forma hipócrita promete a recuperação de parte da malha ferroviária, quando na verdade o único interesse e promover a própria imagem as custas dos sonhos dos outros. 

Em sua busca por empresários interessados em investir em empreendimentos na cidade de Miguel Pereira, o prefeito não pensou duas vezes antes de colocar um outdoor em mais um trecho da Linha Auxiliar usado pela AFPF, aliás essas ações tem o costume de estampar a cidade com projetos mirabolantes sem qualquer preocupação com aquilo que está sendo coberto e varrido para longe da vista de seus empresários


Não satisfeita em tirar o trem da AFPF de perto do restaurante, cada vez mais são colocados empecilhos para que o mesmo esteja próximo do centro da cidade. 

Existem duas árvores de pequeno porte dificultando a passagem do auto de linha que e um pouco mais largo que a manobreira, mas não foi possível obter autorização para realizar uma poda para melhorar as condições de movimento pois e preciso licença ambiental para isso. 

Mas novamente surgem as justificativas hipócritas: podar uma pequena árvore para a AFPF não e permitido, mas derrubar as árvores centenárias da cidade para não atrapalhar os novos projetos da prefeitura e considerado normal, dentro da lei e sem consequências. 

Na tentativa de retirar definitivamente o auto de linha de perto do restaurante, foi proposto um acordo onde um empresário se comprometeria a custear a reforma do auto de linha na parte mecânica e na aparência em geral, mas dentre as condições desse acordo, o auto de linha deveria ser transferido para Portela.

Observação: com a linha em bitola larga lá em Portela, o único trecho em bitola métrica para a AFPF seria a linha com aproximadamente 600 metros em linha reta, soterrado desde o início dos anos 2000. Se há alguns anos enquanto o trem da AFPF ficava próximo ao centro da cidade foi incendiado, o que nos faz acreditar que lá em Governador Portela sem a mínima segurança o resultado será diferente?.

Os investimentos municipais para garantir a segurança de bens públicos ou patrimônios do acontece quando e conveniente, um exemplo disso foi a inauguração de uma base de segurança do outro lado da rua, quase em frente ao restaurante poucas semanas após sua inauguração.

Próximo a praça da bandeira, numa área onde costuma acontecer desmoronamentos de terra que cobrem completamente os trilhos está estacionado o trem da AFPF, e quando a ferrovia fica coberta de barro resta aos voluntários organizarem mutirões para limpar a via.

O Blog Trem Da Serra Do Rio De Janeiro e um defensor das ferrovias no estado do RJ, todas as oportunidades em manter a ferrovia viva através de trens turísticos, veículos de manutenção ou até mesmo museus sempre haverá destaque nas postagens referentes a esse tema, mas não podemos permitir que projetos mal planejados e más intenções interfiram na preservação do pouco que nos resta da Linha Auxiliar em Paty Do Alferes e Miguel Pereira.

A vinda da locomotiva 220 foi um grande passo no resgate da nossa história, mas muitas coisas ficaram mal resolvidas gerando uma falta de credibilidade nas promessas feitas durante mandatos anteriores e nas últimas campanhas que culminaram na reeleição daqueles que se comprometeram a cumprir suas promessas.

Se não há nenhuma empresa interessada em assumir o projeto do trem turístico e a prefeitura não pode investir sozinha nas obras de readequação da ferrovia, e preciso no mínimo que a população seja informada da real situação. Se não for possível reativar esse pequeno trecho de 5 quilômetros, que cuidem da locomotiva assim como feito em Nogueira, Vassouras e Conservatória onde embora as locomotivas não funcionem, são cartões postais que atraem milhares de pessoas todos os anos.

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